UM ANJO FADADO A TOMAR CONTA DE HENRIQUE




“Nós sentimos muito, mas não podemos nos responsabilizar por ele.”
“Como assim? Ele é uma criança de menos de três anos! Retruquei assustada.”
“Sim, mas uma criança que escalou a trave da cesta de basquete e assentou-se no aro, com as perninhas balançando lá em cima, e nós professoras, ficamos daqui de baixo, em apuros, sem termos como resgatá-lo, e suplicando para que ele descesse, ao mesmo tempo com pavor de que ao tentar fazê-lo ele caísse e nós não podíamos fazer nada. Nós não o queremos aqui na escola, porque não damos conta dele. “
Fiquei meio aparvalhada por dois segundos, e na mesma hora, recobrei-me e disse, mas se uma escola com duas professoras para tomar conta de dez crianças não o consegue, como vou conseguir achar uma escola para ele? Por favor, reconsiderem. Eu sei que ele é levado demais, mas temos que conseguir dominar este menino. Eu prometo que ajudarei. Vocês agora o conhecem, sabem como ele é. Vão conseguir.

A escola era bastante diferenciada e cara. A escolha daquela escola para ele já havia sido pensada exatamente por ter piscina, com professora de natação, por ter um quintal enorme, com árvores, brinquedos, animais de estimação, inclusive um veadinho lindo. Ele demandava espaço e amava animais e água. Era tudo o que ele necessitava. Acabaram cedendo, afinal, perder um aluno naquele valor de mensalidade também não era interessante. E deu certo, porque elas aprenderam a não se distrair dele por um segundo para evitar aquelas situações.

Esta não foi a única vez que ele foi rejeitado de cara por suas estripulias. Aos sete anos, precisou de uma aula particular de matemática, por consequência de uma troca de escola no meio de um semestre letivo. Ele estava dando muito trabalho na escola pública, Instituto de Educação, e a psicóloga decretou que era porque a escola era fraca para ele. Precisava de uma escola mais exigente. Deixei-o na casa de Marilu, professora de matemática com o dever de ensiná-lo os fatos fundamentais da multiplicação, que ele não tinha sido ensinado e a prova acontecia daí a três dias. Uma hora depois fui buscá-lo e ela estava em palpos de aranha. "Este não quero nunca mais!" Pensei, acho que já ouvi isso antes. "Ele subiu na mangueira, do galho dela, passou para o telhado da casa e ficou andando no telhado enquanto eu lhe ordenava descer e ele não obedecia."

Estas foram as primeiras de uma série de reclamações na sua vida escolar. E eu bem antevia isso.
Foi também uma dificuldade muito grande de fazer com que ele crescesse e se tornasse um adulto sem sequelas graves de acidentes. Uma sucessão.
Se quiser enumerar, vou ter que fazer um esforço pra relembrar tantos, mas tenho certeza de que muitos irão ficar esquecidos. Não porque foram menos importantes, mas porque o número é grande demais.

Com um ano e nove meses, era um gelado mês de julho, ele quase se afogou. Tinha uma atração por água e não podia ver uma piscina que pulava, mesmo já sabendo que iria beber água. Nós tínhamos acabado de estacionar na casa de um médico amigo para um churrasco, no Morro do Chapéu, eu o desci do colo, e ele deu uma corrida e pulou na piscina. Mas não sabia nadar. O Ronaldo, pai, teve que pular atrás para resgatá-lo, de roupa, sapato e jaqueta. Ficou ensopado, e como conseguir uma roupa emprestada para um homem de 1.95m? O dono da casa conseguiu achar uma daquelas calças largas de elástico na cintura que estavam em moda na época, e o Ronaldo vestiu e ficou igualzinho o Hulk, com as calças no meio das pernas.

O fato é que já fraturou braço, clavícula, pé, os dedos da mão direita, com consequente cirurgia para colocar pinos; já esmerilhou no vôlei o tornozelo e foi operado três vezes; quebrou o dente da frente assim que ele nasceu todo bonitão; já contraiu esquistossomose aos quatro anos, e ficou gravemente doente, porque pulou em um córrego sem minha autorização, durante um dia no sítio de um casal amigo. Aos cinco anos, caiu do alto de árvore no nosso sítio, desmaiou e tivemos que o levar às pressas para o hospital; teve uma leve concussão e ficou em observação, mas recuperou-se logo. Teve também inúmeros incidentes menores com pontos no queixo, e em outros lugares. Teve um ano que ele deu entrada no pronto socorro do Hospital Semper sete vezes. Sempre por cortes, e contusões.

Uma vez, eu estava na porta da escola do irmão mais velho, Vinicius, e ele tinha pouco mais de dois anos. E todos os dias, quando ia buscar o irmão, ele se deliciava, pegando balinhas na carrocinha estacionada na porta, que na hora de ir embora, eu acertava com o baleiro. Eu estava de olho nele, mas conversando com amigas numa rodinha. Ele se afastou ligeiramente, para buscar algo na carrocinha. Pensei que bastava estar com o olhar pregado na criaturinha. Mas, ao se virar para retornar ao lugar onde me encontrava, sem pestanejar, ele deu uma corrida para o meio da rua. Acontece que o ônibus estava vindo, e havia carros parados ao longo de toda a calçada e ele pequenino, saindo por detrás dos carros não seria percebido. Eu me atirei para o meio da rua, com os braços abertos, e gritando. Fui de encontro ao ônibus, O motorista freou, mas xingando a minha mãe e gritando “Louca, louca!!!!”... Até que eu ergui o menino e o coloquei no colo, abraçando-o apertado, aliviada. O motorista ficou tão assustado quando viu que a minha loucura havia salvo a vida do bebê, que ele desceu do ônibus, veio ter comigo, e dizia, eu não o teria visto! E ele precisou de um tempo para se recuperar do susto.

Mas, um pouco mais velho, aos sete anos, ele foi atropelado. Neste caso eu culpo o Especial que o trazia todas as tardes do Colégio Pitágoras. Eles pararam em frente ao meu prédio, na rua Fernandes Tourinho, e a encarregada de atravessar as crianças, não o fez. Ele desceu rápido, saiu por detrás do ônibus estacionado em fila dupla, quando vinha passando um carro, que o catapultou e ele voou caindo a alguns metros de distância, de costas, mas com a mochila cheia de cadernos e livros, que amorteceu a queda. Não teve um único arranhão. Levantou-se correndo e chegou na calçada, com os vizinhos do prédio gritando assustadíssimos.

Mas, foi crescendo e os acidentes continuaram a acontecer. Batidas de carro, e o pior de todos: Por imprudência levada pelo álcool ao comemorar seu aniversário com um churrasco, pulou com em cima de três amigos que conversavam, agarrando-os com os braços e envolvendo-os com as pernas, só que eles não deram conta de seu tamanho e peso, e ele caiu em cima de uma fileira de garrafas vazias de cerveja que estavam no chão. As garrafas se quebraram enfiando-se em vários pontos de sua perna, desde a coxa, joelho e canela. Os cortes eram enormes, e tão profundos que dava para ver o osso. Eram abertos, rasgados. O sangue esguichava e toalhas de banho foram trazidas para tentar conter, mas se encharcavam rápido. Foi levado às pressas por um cortejo de carros para o hospital e atendido imediatamente na urgência. A sutura foi dada a frio. Eu assisti, junto com a Raquel. Ele se agarrava à grade da cama e cerrava os dentes para não gritar. Nesta hora, o álcool ingerido deve ter ajudado. Mas serviu de lição. Ele sabia que esteve por um triz de morrer com a ruptura da femoral.

Há dois dias, houve outro acidente não menos potencialmente grave, e que por sorte, não teve maiores consequências. Eram sete da manhã, ele tomava café e percebeu pelo janelão da cozinha que o canteiro suspenso que tem em sua área privativa exibia a goiabeira cheia de goiabas maduras. Foi apanhá-las. No retorno, ao pular o vão da janela na cozinha, pés molhados do orvalho, ele escorregou caindo com toda a força no chão e batendo a cabeça na quina do batente da janela. O estrago foi grande: um corte enorme na cabeça, necessitando de muitos pontos. Mas poderia ter tido consequências trágicas.
A minha mãe acreditava em destino e anjos da guarda. Ela dizia que até os brinquedos tinham destino certo quando saíam da fábrica. Uns estavam destinados a cair em mãos cuidadosas, outros em destruidoras.
Então, para quem crê em Anjo da Guarda, eu penso que o dele é um anjo que teve o destino de cuidar de um menino muito trabalhoso. Mas é bom não abusar, porque ele já deve estar exausto.
Eu estou.
RMC









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