Meu pai era filho de uma mãe que não era capaz de demonstrar afeto. Como ele a resumia: "Minha mãe é seca." No entanto, ele era amoroso, e quando eu aprendi a escrever, descrevi-o como "beijoroco" numa redação aos sete anos, porque ele sempre estava a pedir beijos.

Ele ensinou-me valores verdadeiros que nunca irei esquecer, sobre ética e moral, dizendo que minha liberdade acabava exatamente onde começava a liberdade do outro, e que ajudar aos outros nos torna mais felizes. Ele praticava isso e sempre se empenhava em deixar o mundo a seu redor um pouco melhor.

Eu tenho certeza de que meu pai era ateu, fato comum a jovens que estudaram em colégios internos de padres, mesmo assim, ele se empenhou para que nós tivéssemos abraçado a religião católica, inclusive fazendo com que levantássemos às seis da manhã no domingo no sítio, levando-nos pessoalmente à missa das sete em Pedro Leopoldo. Não entrava na Igreja, comprava o jornal e lia na praça. Ele pensava que a religião oferecia consolo nas horas difíceis e queria que tivéssemos o livre arbítrio para escolher. Tanto assim que ali por volta dos quatorze anos, eu passei a questionar a religião e perdi minha fé. Não houve pressão, nem influência dele.

Saiu do interior para a capital ainda menino, mas o interior permaneceu no seu cerne, e manteve-se simples. Gostava de roça. Gostava de plantar uma horta e podar as laranjeiras do sítio. Gostava de pessoas simples. Nunca ostentou nada. Tinha amigos em todas as esferas e classes sociais, e nunca desmereceu ninguém. Nunca valorizou aparência, status, dinheiro, posses. Seus valores eram caráter, honestidade e simplicidade de alma. Tinha conversa para todos.

Ensinou-me sobretudo a não depender da opinião alheia, e que o parâmetro para discernir o certo e errado era a própria consciência. Sempre afirmava que dormir de consciência limpa era a maior felicidade. Nas suas palavras: "Bater a cabeça no travesseiro e dormir tranquilo."

Era rigoroso conosco, principalmente no que dizia respeito aos estudos, e ao mesmo tempo carinhoso, sempre nos pedindo beijos.

Era intempestivo. Hoje seria talvez classificado de bipolar, pois uma coisa pequena mudava seu humor subitamente. Sua raiva era sempre voltada contra objetos inanimados. Era o açucareiro que soltava ou pouco açúcar ou açúcar demais e que ele atirava longe; era a TV que saía do ar, era o pneu do carro que furava e ele o agredia com pontapés. Estas reações assustavam-me quando pequena, mesmo se com as pessoas ele sempre fosse gentil e o máximo de reação fosse um suspiro.

Eu não sei o que ele tinha, que só de olhar, nós já abaixávamos a cabeça e obedecíamos sem retrucar. Aquilo era respeito. Um grande respeito pela autoridade dele. O pai.

Tinha uma enorme alegria de viver; era irrequieto, e acordava todos os dias cedíssimo. Achava desperdício de vida ficar dormindo e dizia que teria a eternidade para dormir. E se não fosse por este seu hábito, eu não teria visto o nascer do sol no mar em Copacabana. Ele me acordada às vezes às cinco horas nas férias para isso.

Leu muito quando jovem, mas depois, preferia reler os mesmos livros que eram seus prediletos. Lembro-me dele com Dom Quixote nas mãos, deitado na cama e rindo. Ele já havia lido o livro dezenas de vezes, mas sempre dava risadas ao reler. Outro favorito era p autor Edgar Allan Poe.

Era animado, sempre nos levando para passear. Chegava em casa do trabalho, trocava-se para sua roupa predileta: bermudas e uma camisa de estampa havaiana espalhafatosa, que naquela época era uma peça inusitada para os homens brasileiros. Um gosto que adquiriu quando morou nos EUA, que casou-lhe como uma luva. Eu achava que ele ficava descolado assim.

Nunca adoeceu. Eu jurava que ele iria viver uma longa vida, até o dia que recebi em primeiríssima mão, como quem recebe um soco no peito, por telefone, a notícia de sua morte prematura, aos 59 anos. Acidente de carro. Eu tinha 24 anos. Entendi naquele minuto porque ele sempre teve ânsia de viver. Era como se adivinhasse que seu tempo aqui seria curto.

Precisei de amadurecer muito para compreender algumas das suas atitudes. Mas, os cinco anos que fomos juntos todos os dias para a Federal nos uniu muito. Conversávamos durante aqueles trajetos. Aprendi muito mais dele, e o amei muito mais profundamente a partir daquela época. Testemunhei atitudes dele neste período, de seu absoluto empenho em ajudar o próximo, como desviar-se do trajeto de volta prá casa, para se embrenhar por uma favela para ir levar ovos, queijo, frutas, legumes e verduras para a extensa família do seu lavador de carro. Nunca o vi mencionar estas suas atitudes com ninguém. Ainda bem que tive esta oportunidade!

Pena que logo após eu me formar, ele se foi. Poderia ter consolidado muito mais a nossa relação.

Após sua morte, em meio a milhares de cartas e telegramas de condolências recebidos por minha mãe, lembro-me de uma carta muito contundente, de um ex-colega que terminou com as palavras: "Morreu sem atropelar ninguém."

Hoje fico pensando, quantas pessoas, que ocuparam cargos de destaque e certo poder, mereceriam estas palavras?
RMC





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7 Responses so far.

  1. Anônimo says:

    Um grande homem , sábio e deixou-nos um legado precioso, como valores morais e ética

  2. Anônimo says:

    Um grande homem ...

  3. Anônimo says:

    Sim. Sou engenheiro Eletricista pela UFMG. Recebi meu diploma de graduação no antigo ginasio do Minas Tenis Clube, na rua da Bahia. Pelas mãos do reitor da UFMG, naquela época, Dr. Marino Mendes Campos.

  4. Anônimo says:

    Que bacana! Quando me formei na UFMG, meu pai era o Reitor.

  5. Anônimo says:

    Recebi meu diploma de Engenheiro Eletricista/UFMG das mãos do Dr. Marino Mendes Campos, em solenidade no antigo Ginásio Esportivo do Minas Tenis Clube, na Rua da Bahia. Paulo A. C. Camelo. pauloacc.bh@gmail.com

  6. Puxa vida! Emociono-me ao saber disso! Paulinho, é um prazer ter seu comentário aqui!

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